segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um grande conselho e um pouco de vinho

Muito antes de saber ler eu já vivia num mundo de histórias que meu pai, um gráfico, me contava. Velhos contos das Mile uma Noites e de famosos livros infantis. Algumas ele próprio tentava inventar, mas não era seu forte. Geralmente fazia a maior confusão ou improvisava finais que nada tinham a ver com o princípio. Sua memória nunca foi grande coisa. Faltou-me dizer que enquanto me contava histórias ia bebendo bons goles de vinho. Gostava de beber principalmente à noitinha, depois do trabalho. Íamos para o fundo do nosso quintal, ele levando camufladamente uma garrafa numa folha de jornal. àquela distância não dava para minha mãe ver que ele bebia. O fundo do quintal, cheio de arbustos, era ótimo refúgio para beber. Mamãe, no entanto, que o conhecia bem andava desconfiada.

Ele bolou então a ideia de me levar junto.
- Vou contar histórias ao menino - explicava.
- Conhece muitas?
- Centenas, minha cara.
Íamos muito felizes para o extremo da casa e nos sentávamos sobre caixotes. Eu adorava suas histórias. Para contá-las, ele, porém, impunha uma condição: eu não poderia falar sobre o vinho à minha mãe. Receita do médico, confidenciou. É, estava doente. Mas não queria que ela soubesse coitada. Por que fazê-la sofrer? Por quê?
A guarda de tal segredo me tornava mais responsável e quase adulto. A cada um de seus goles, eu crescia.
- Mas como é que acaba a história, pai?
- Que história?
- A que estava contando.
- Refere-se à Branca de Neve?
- Essa o senhor já contou, mas pode contar outra vez.
- Bem, o Lobo Mau andava por aquela floresta, de olho nela. Seguia a menina por toda parte, o malvado.
- Pai, esse lobo era o mesmo que comeu a avozinha do Chapeuzinho Vermelho? - estranhei. Meu pai hesitou, reconhecendo que cometera um engano.
- Primo dele.
- Mas a inimiga da Branca de Neve não era bruxa? - lembrei.
Meu pai virou a garrafa.
- Certamente. Diabo de bruxa.
- E o quê o lobo faz nessa história?
Pergunta direta, exigia resposta.
- Ele ia passando pela floresta, como quem não quer nada, quando viu a Branca de Neve e os cinco anões brincando de amarelinha.
- Sete anões, pai - corrigi.
- No momento eram cinco. Dois estavam em casa com gripe porque tinham tomado muito sorvete. Mas o Lobo se deu mal porque o Pequeno Polegar estava por perto e deu cabo dele usando um estilingue. Dias mais tarde Branca de Neve e o Pequeno Polegar casavam-se - conclui, enfático.
- Ela não casou com um príncipe, pai?
O contador de histórias ia virar novamente a garrafa mas se deteve.
- Um príncipe? Sim. Um príncipe. Mas em segundas núpcias. Coisas da vida.
Foi assim que minha vocação para as letras despertou: ouvindo histórias confusas de alguém que gostava tanto delas quanto do vinho. Ele em breve seria o primeiro a ler minhas redações escolares. Palavra por palavra, mexendo os lábios. Sua aprovação era um largo sorriso, comprido como reticências. Quando meu boletim mostrava más notas, consolava-me revelando que ele nem sempre fora bom aluno. Na verdade fora péssimo, nem chegara a terminar o ginasial.
Além de gostar de vinho, meu pai gostava também de ler, vício adquirido no exercício da profissão de gráfico. Quando sobrava dinheiro, comprava livros. De um em um formara uma biblioteca de algumas centenas de volumes. Alguns nomes de escritores famosos li pela primeira vez naquelas lombadas. Machado de Assis, Eça de Queirós, Anatole France, Emile Zola, Oscar Wilde, um montão. Um dia me disse que ler era a melhor coisa que fazia na vida.
- A leitura me faz voar.
- Voar?
- Voar. Infelizmente nunca pude viajar além de Campinas, mas nas asas de um livro viajo. Conheci o mundo, virando páginas. É mais cômodo. E não é preciso carregar malas, entendeu?
Havia de fato um certo ar de sabedoria nele que não se percebe em qualquer pessoa. Lembro de ter me desafiado:
- Pergunte-me qualquer coisa sobre a China, que respondo.
Quando entrei para a universidade, comemorando, ele convidou-me para uma pizza com vinho. Certamente não no fundo do quintal. Era uma bela e ruidosa pizzaria. Eu merecia.
- Hoje vai vinho estrangeiro.
- É muito caro, pai.
- E daí?
Estava feliz com meu ingresso. Muito mesmo.
- As histórias e lendas que me contou de alguma forma me ajudaram a passar nos exames, pai. Senti mais chão sob meus pés.
- Acha que vai ser bom aluno?
- Tentarei.
- Mas, conseguindo ou não, faça algo ainda melhor. Ler. Há escritores e poetas que devem ser lidos. Lima Barreto, Drummond. Morrer sem conhecê-los é um vexame - disse após o primeiro gole. - A maioria dos doutores ignora tudo fora da profissão. O conhecimento deles cabe dentro de um pequeno escritório. Desconhecem o homem, desconhecem o mundo... Perdem o que se fez e se faz de melhor no planeta. Não gostaria que fosse um desses. Que tal?
- Acho que o senhor tem razão.
- Refiro-me ao vinho.
- Está ótimo, pai.
- Já que é sua opinião, peço mais uma garrafa.

                                                                                        - Marcos Rey


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